A manipulação da história.


Carta de Dilma a FHC não chegou ao Museu da República

Exposição sobre o período republicano mostra Fernando Henrique como um presidente que 'vendeu o Brasil' e Lula como o redentor da nação

Cecília Ritto, do Rio de Janeiro

Depois de oito anos de megalomania lulista, a presidente Dilma Rousseff aproveitou os 80 anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para devolvê-lo publicamente ao lugar de destaque na história recente do Brasil. Em carta aberta, Dilma definiu FH como “o ministro arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica”, e lembrou “o espírito do jovem que lutou pelos seus ideais, que perduram até os dias de hoje”.

A grandeza de espírito da carta não chegou a uma instituição importante, que tem como sua principal missão a guarda da história do Brasil republicano. No Museu da República, instalado no Rio de Janeiro no histórico Palácio do Catete, uma exposição que pretende contar a história da república brasileira apresenta Fernando Henrique como um presidente que se aproveitou eleitoreiramente do Plano Real, promoveu privatizações que “venderam o Brasil” e conseguiu sua reeleição comprando votos de deputado e senadores no Congresso Nacional. O ex-presidente Lula, ao contrário, tem sua trajetória acompanhada desde o regime militar, como o líder operário que resistiu à ditadura, enfrentou a repressão e perdeu três eleições, até conseguir chegar à presidência, lugar que lhe era destinado.

Reprodução/Oscar Cabral

Charges de Santiago (à esquerda) e de Aroeira (à direita), cedidas pelos autores ao Museu da República, ironizam as privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso

Charges de Santiago (à esquerda) e de Aroeira (à direita), cedidas pelos autores ao Museu da República, ironizam as privatizações do governo Fernando Henrique

Batizada de “Res Pública Brasileira” (coisa pública brasileira), a exposição ocupa praticamente todo o terceiro andar do museu – onde fica o quarto onde Getúlio Vargas se suicidou, em 1954, e é o local que mais atrai visitantes, principalmente estudantes. Inaugurada em abril de 2010, ela narra a trajetória republicana através de seis conjuntos: a república proclamada, a oligárquica, a nacional estatista, a liberal-democrática, a ditadura e a república cidadã. Cada uma dessas partes foi concebida com base em textos feitos por historiadores de instituições respeitadas, como a Fundação Getúlio Vargas e a Universidade Federal Fluminense.

A concepção geral da mostra, que tem curadoria da historiadora Maria Helena Versiani, é bem tradicional. Em todas as salas, a ideia é a mesma. Textos curtos estampados nas paredes, muitas fotos, alguns objetos e poucos comentários. O início da parte dedicada à República Cidadã, que ocupa duas salas, não é muito diferente. A narrativa, linear, passa por Tancredo Neves, José Sarney, Ulysses Guimarães e a Constituição de 1988, e uma pincelada na força dos movimentos sociais, sintetizados em um cartaz da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) pedindo pela reforma agrária. Na última, a coisa muda de figura. Só dá Lula, e Fernando Henrique merece textos como o que se segue: “Em 1998, Fernando Henrique é reeleito em um processo marcado por denúncias de favorecimento político em troca de apoio. Consolidou-se um projeto de redução do papel do Estado na economia, que envolveu privatização de várias empresas.”

Bem diferente do tom da apresentação do governo Lula. “O candidato do PT, ex-metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições presidenciais em 2002 e 2006, a partir da articulação de uma aliança que reunia extremos da política. Seu governo vem obtendo bons indicadores nas áreas econômica e social, com destaque para a erradicação da fome no Brasil. Não obstante, a sua gestão foi, em mais de um momento, associada a escândalos de corrupção”.

Mais do que as palavras, no entanto, o que marca a diferença de tratamento entre FH e Lula é a iconografia. O período de 1994 a 2002 é ilustrado por fotos burocráticas e charges contrárias à privatização. “Se privatizar, o Brasil vai rachar”, diz uma. Em outra, alguém diz a FH: “Presidente, não consigo achar o Brasil”. Ele responde: “Claro que não... Eu vendi”.

Enquanto isso, o louvor a Lula aparece na foto da grávida que escreveu na barriga “Lula eu te amo”, em uma pequena garrafa na qual um artesão nordestino desenhou com areia a imagem de Lula e de Mariza Letícia e escreveu: “Luiz Inácio Lula da Silva, a nação brasileira te ama.” Penduradas no teto, bandeiras do PT, do PDT, do PCdoB, do PMDB, do Movimento dos Sem Terra e da Força Sindical coroam a euforia lulista da República Cidadã.

Para o historiador e professor do departamento de ciências sociais da UFSCar Marco Antônio Villa, o discurso pró-Lula está contaminado pelo espírito do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da época de Getúlio Vargas, o último presidente a morar no Palácio do Catete. “Essa história que começa no dia 1º de janeiro de 2003 não faz sentido em um museu oficial que pretende contar a história republicana. “É uma leitura religiosa e, no fundo, reacionária”, afirma.

A exposição está programada para ocupar o terceiro andar do museu por mais, pelo menos, cinco anos. A diretora da instituição, Magaly Cabral, que além das credenciais profissionais exibe a de mãe do governador Sérgio Cabral, diz que não percebeu qualquer desequilíbrio no tratamento dispensado a FH e Lula. Mas pondera que a exposição “não é apolítica”. “Não vem falar de neutralidade por parte do museólogo, do historiador, do pesquisador porque é difícil. Mas é obvio que temos que fazer um esforço e prestar atenção nisso”, diz. Segundo ela, no entanto, uma exposição de tão longa duração pode e deve sofrer modificações. Uma leitura da carta de Dilma a Fernando Henrique poderia ser um bom começo.

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    # por Joaquim - 4 de julho de 2011 às 11:21

    Os 44 milhões de eleitores que se opuseram à tamanha prepotência concordam com você e com a matéria exposta, professor.
    Pena que muitos de nós são sufocados diariamente por uma enxurrada de teorias sem embasamento histórico, proveniente de pessoas conformadas (ou favorecidas) e com pouca perspectiva; não obstante, quem nos deveria representar com orgulho, a oposição, está flácida demais e tímida como nunca. Claro, não haverá sustentação para o ''milagre de 2003'' com um indivíduo como Dilma no poder. Do jeito que o remador rema, não haverá nem um quartinho dos fundos no museu onipotente de Lula reservado para a companheira.

    Mas me questiono diariamente: será que é tão difícil conseguir enxergar os fatos como eles são? Mesmo para o mais opulento dos petistas? Mesmo para o cidadão mais comum que via em Lula um novo Noé, pronto para colocar todos na barca e escapar do dilúvio e que agora o enxerga como o grande e eterno messias? Para que ele seja o salvador é necessária a ''inovadora'' demolição do legado deixado por FHC?

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    # por Dawran Numida - 4 de julho de 2011 às 16:30

    Eles perderam a guerra da desconstrução de FHC. Mas, não conformam-se com isso e continuam com esse artificialismo ridículo. Se há alguma coisa boa nisso, é conseguirem superar-se em estultices. Deveriam colocar lá todas as falas de Lula, inclusive as que ele fala contra a Constituição de 1988, quando fala sobre a falência do Plano Real, sobre Collor e Sarney, sobre os empresários, banqueiros. Todos a quem ele aliou-se hoje. E consegue ser pior do que a imagem péssima que construía deles todos. Museu da República, sim. Só é preciso retirar de lá os idólatras apaniguados. Quem precisa desse tipo de gente para se promover, não pode almejar por muita coisa.

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    # por Anônimo - 4 de julho de 2011 às 16:42

    "Seu governo (o de Lula) vem obtendo bons indicadores nas áreas econômica e social, com destaque para a erradicação da fome no Brasil."
    O autor do texto, que certamente fará parte da hagiografia de Lula, deveria se perguntar: se a erradicação da pobreza no Brasil foi tão bem sucedida no governo Lula, por que sua sucessora precisou inventar um plano para alimentar os 17 milhões de miseraveis que foram esquecidos pelo bolsa família? (o programa foi lançado no início de junho, mas ofuscado pelo apartamento do ex-super-ministro Antonio Palocci).

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    # por Gabriel Perboni - 4 de julho de 2011 às 17:53

    Villa, leio seu blog por indicação do L. Narloch desde os “idos do ano passado” e sempre me comprometo a deixar um comentário, que sempre fica pra depois e depois e depois... enfim, este último post veio de encontro ao último assunto abordado em um programa que produzo com alguns amigos professores e historiadores, visando despertar o interesse por assuntos históricos no público que não tem “paciência” para textos acadêmicos.

    No programa, que tratava especificamente da fuga da família real para o Brasil em 1807, trocamos algumas idéias sobre como é difícil saber onde aconteceu o que naquele período, tendo em vista que a instalação da república apagou boa parte da história monárquica com ações simples como trocar o nome de tudo para XV de Novembro (:

    Então, acredito que, mais cedo ou mais tarde, esse “pequeno ato de parcialidade” vai ser reparado. A nós, meros civis, só resta torcer para que o reparador seja menos parcial e deixe a sardinha no meio do prato.

    Abraço!

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    # por Unknown - 2 de agosto de 2011 às 16:48

    Concordo com o Gabriel. É muito difícil esperar que um governo populista seja imparcial ao contar sua própria história e principalmente a de seu antecessor.

    Mas ainda tenho esperança de que o tempo fará justiça e colocará todos na mesma balança.

    É triste acabar com a ilusão de que podemos confiar nas instituições.

    Ao menos (ainda) resta um pouco de memória.

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    # por Grupo Organizador - 2 de agosto de 2011 às 17:22

    Sendo claro!

    Nós acadêmicos infelizmente ainda não aprendemos a sermos imparciais em nossas indagações! Nos perdermos em meio ao nosso vislumbramento político, filosófico e religioso. E isso é uma realidade latente. Isso me impressiona simplesmente pelo fato da historiografia cair de em descrédito, pois a imparcialidade é o primeiro ato para a defesa erronêa de ideais radicalizados e polarizados. Me preocupa quando uma formadora de opinião expressar uma idéia desfocada dos acontecimentos históricos e jogam para as próximas gerações essa incoerência latente.

    Pura incapacidade DOS PROFISSIONAIS CITADOS: "Não vem falar de neutralidade por parte do museólogo, do historiador, do pesquisador porque é difícil. Mas é obvio que temos que fazer um esforço e prestar atenção nisso”"