Viver de Província
Este artigo foi publicado originalmente na "Folha de S. Paulo" em 7 de janeiro de 2009. Uso uma expressão do escritor Júlio Ribeiro, brilhante polemista, republicano radical e abolicionista. Ribeiro morreu em 1890, já desiludido com os rumos da república, proclamada menos de um ano antes. Passou a maior parte da vida em São Paulo, especialmente no interior.
Tive a oportunidade de coordenar a Coleção Paulista que republicou dois importantes textos políticos de Ribeiro, "Cartas sertanejas" e "Procelárias". Os volumes foram apresentados (muito bem apresentados, diga-se) pelo professor José Leonardo do Nascimento.
Republico este texto por solicitação de uma leitora deste blog:
TENDÊNCIAS/DEBATES
"Viver de província"
MARCO ANTONIO VILLA
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Apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB, o interior continua marcado pelo provincianismo
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NO FINAL do Império, em meio às turbulências políticas, Júlio Ribeiro -escritor, gramático e polemista republicano- cunhou a expressão "viver de província", nas suas "Cartas Sertanejas". Era uma definição sarcástica do pobre cotidiano político-cultural do interior de São Paulo. Depois de 120 anos, pouco mudou:
apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB brasileiro, o interior continua marcado pelo provincianismo.
A inexpressividade política do interior é suprapartidária. Vez ou outra algum grupo tenta ter espaço regional, mas acaba fracassando. O último foi a conhecida "República de Ribeirão Preto", expressão cunhada para designar os aliados do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, em Brasília.
Porém, a denúncia de uso pouco ortodoxo de uma mansão, na capital federal, levou ao naufrágio do grupo, mesmo com a eleição de Palocci para deputado federal. E o interior, para o bem ou para o mal, continuou sem liderança expressiva.
A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) poderia ser um palco para o aparecimento de lideranças interioranas. Contudo, das suas atividades pouco ou nada se sabe. Muitos nem sequer imaginam onde, na capital paulista, se localiza o prédio de um dos Poderes do Estado.
Dos seus 94 deputados, mesmo os que acompanham a política regional sabem, se tanto, o nome de meia dúzia. O noticiário político prioriza o Congresso Nacional. A Alesp é solenemente ignorada: só é notícia quando ocorre denúncia de um suposto escândalo administrativo.
Outra possibilidade seria a ação de alguma administração municipal que se notabilizasse pela inovação. Mas, dos mais de 600 municípios interioranos, quais poderiam ser destacados pela originalidade administrativa?
A política estadual concentra-se na capital e, no máximo, na Grande São Paulo. Os líderes partidários que têm presença nacional também atuam nessa região. O interior é marcado pelo situacionismo, pela política do "sim, senhor". Os prefeitos mudam de partido acompanhando a base política do governador. Não têm opinião formada. E os deputados são cobrados pelos seus eleitores para trazer recursos para suas bases, e o preço é sempre apoiar o governo.
No campo cultural, apesar do grande número de faculdades e universidades instaladas no interior, não houve mudança. O conservadorismo local venceu a potencialidade transformadora da universidade.
Eventualmente professores universitários passaram a participar da política local, mas sempre buscando alguma forma de composição política com os poderosos locais. E, quando necessário, os conservadores utilizaram-se da violência para expulsar os professores indesejáveis, como em São José do Rio Preto, logo após o golpe de 1964, na faculdade local e que hoje é parte da Unesp.
Há uma valorização absoluta do dinheiro e um desprezo pela cultura.
Em muitas cidades há mais joalherias que livrarias. As políticas culturais são fadadas ao fracasso. O poder público -tal qual a maioria dos eleitores- não tem interesse nas atividades culturais: elas não dão voto e, por vezes, dão problemas.
Em Araraquara, depois do espetáculo "Mistérios Gozosos", de Oswald de Andrade, José Celso Martinez Corrêa e grupo foram processados, acusados de "vilipendiar atos e objetos de culto religiosos". O processo foi movido por araraquarenses incomodados "moralmente" com o trabalho de Zé Celso.
Uma "atividade cultural" muito conhecido no interior, espécie de marca regional, é o massacre anual de animais conhecido como Festa do Peão Boiadeiro, em Barretos. Como tudo que é ruim, prolifera rapidamente: os rodeios espalharam-se pelo Estado.
No Vale do Paraíba, criaram até um rodeio para Cristo, que, certamente, deixaria o Nazareno horrorizado.
A maioria dos jornais é subsidiada pelo poder público ou por algum potentado local. O nível das publicações é rasteiro. O espaço da coluna social é várias vezes superior ao destinado a temas políticos.
Quando surge uma imprensa independente, os jornalistas passam imediatamente a ser perseguidos e ameaçados. Basta recordar, entre tantos outros exemplos, dos tristes episódios de Marília, que envolveram um conhecido político local e o ataque criminoso às instalações do "Diário".
Júlio Ribeiro morreu em 1890, aos 45 anos. Viu muito pouco do Brasil com que sonhou: sem escravos e republicano. Mas o interior não mudou: tal qual no final do século 19, continua impressionando pelo dinamismo econômico e pelo provincianismo.
# por edilson monteiro da silva - 30 de dezembro de 2011 às 21:23
Parabéns pelo texto e por relembrar como o progresso não chegou ao interior. Ainda não havia percebido tão claramente essa situação, mas condiz tanto com a realidade que me pergunto como ninguém ainda alertou para isso?
Preciso parabenizar também a sua iniciativa de levar luz ao poder mais obscuro do Brasil: o Judiciário. Cada vez mais entendo a razão da justiça ser lenta, cega, surda, muda e . Claro que em relação aos que não têm poder/prestígio.
Eles são como obesos mórbidos, "comem" o dinheiro público e querem sempre mais, são lentos e pouco ativos. Por isso precisam de 2 meses de férias e são avessos a qualquer forma de controle.
Acredito que um judiciário mais saudável vai melhorar os outros poderes.
# por Domingos Fulvio do Nascimento - 31 de dezembro de 2011 às 00:06
Villa, Orestes Quércia nasceu em Igaçaba SP, distrito de PedregulhoSP., foi muito bem sucedido na sua visão política, ao se mudar para Campinas, justamente para fugir desse provincialismo. Assim fazem os políticos de visão. É uma maneira de queimar etapas. Seu artigo está muito bem escrito, porém, acho que você esqueceu de falar da CONVENÇÃO DE ITÚ-sp, ( 1873 ) QUE FOI A PRIMEIRA CONVENÇÃO REPUBLICANA DO BRASIL. Ao meu ver, o interior com seu provincialismo desconhece a força que tem . É claro que, caso surgisse uma liderança interiorana, o os políticos da capital tudo faria para neutralizar esse movimento. Será uma das consequências do federalismo ?
# por barbarah.net - 31 de dezembro de 2011 às 15:20
Uma lágrima para Daniel Piza.
# por Anônimo - 1 de janeiro de 2012 às 12:47
Villa, moro no interior e concordo plenamente contigo. Vc chamou atenção para um fenômeno que deve ser debatido nessas cidades. Talvez a maior causa dessa questão, seja a " maioria dos jornais é subsidiada pelo poder público".
Só não concordo com duas coisas. 1- Professor universitário tem como missão principal, colocar nossas universidades entre as 10 melhores do mundo, até lá, não tem moral. 2 - Festa de pião, que eu detesto, gera economia e renda , e essa conversa de maltratar animal é coisa de depressivo. Vc prefere ser touro de rodeio ou boi de abate.
Parabéns pelo texto.
# por Joaquim - 1 de janeiro de 2012 às 15:21
O que era pra ser um centro receptor e difusor de ideias, cultura e opinião virou um pedaço grande do mais puro nada. E está ficando cada vez mais caro pra morar, comer, viver.
Sem trabalho, sem expressão, violento: esse é o triste retrato do interior.
# por Anônimo - 1 de janeiro de 2012 às 16:56
Sábias palavras. Morei em cidades economicamente desenvolvidas do interior paulista. A vida cultural ali, porém, é triste. Era comum encontrar lojas oferecendo livros com 50% de desconto. Eu fazia a festa, mas, por outro lado, isso demonstra o pouco apreço que o povo tem pelas letras.