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Obsessão pelo poder

Como é sabido, o Partido dos Trabalhadores nasceu em 1980. Contudo, muito antes da sua fundação, foi precedido de um amplo processo de crítica das diversas correntes de esquerda realizada na universidade e no calor dos debates políticos. A ação partidária, os sindicatos e as estratégias políticas adotadas durante o populismo (1945-1964) foram duramente atacados. Sem que houvesse um contraponto eficaz, fez-se tábula rasa do passado. A história da esquerda brasileira estaria começando com a fundação do PT. O ocorrido antes de 1980 não teria passado de uma pré-história eivada de conciliações com a burguesia e marcada pelo descompromisso em relação ao destino histórico da classe trabalhadora.

O processo de desconstrução do passado permaneceu durante vinte anos, até o final do século XX. As pesquisas universitárias continuaram dando o sustentáculo "científico" de que o PT era um marco na história política brasileira, o primeiro partido de trabalhadores. O estilo stalinista de fazer história se estendeu para o movimento operário. Tudo teria começado no ABC. Mas não só: a história do sindicalismo "independente" teve um momento de partida, a eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, em 1975 (na posse, estava presente o governador Paulo Egydio, fato único naquela época). Toda história anterior, desde os anarquistas, tinha sido somente uma preparação para o surgimento do maior líder operário da história do Brasil.

A repetição sistemática de que em São Bernardo foi gestada uma ruptura acabou ganhando foro de verdade científica, indiscutível. Lula tinha de negar e desqualificar a história para surgir como uma espécie de "esperado", o "ungido". Não podia por si só realizar esta tarefa. Para isso contou com o apoio entusiástico dos intelectuais, ironicamente, ele que sempre desdenhou do conhecimento, da leitura e da reflexão. E muitos desses intelectuais que construíram o mito acabaram rompendo com o PT depois de 2003, quando a criatura adquiriu vida própria e se revoltou contra os criadores.

Mas não bastou apagar o passado. Foi necessário eliminar as lideranças que surgiram, tanto no sindicato, como no PT. E Lula foi um mestre. Os que não se submeteram, aceitando um papel subalterno, acabaram não tendo mais espaço político. Este processo foi se desenvolvendo sem que os embates e as rupturas desgastassem a figura de líder inconteste do partido. Ao dissidente era reservado o opróbrio eterno.

A permanência na liderança, sem contestação, não se deu por um choque de ideias. Pelo contrário. Lula sempre desprezou o debate político. Sabia que neste terreno seria derrotado. Optou sempre pela despolitização. Como nada tinha escrito, a divergência não podia percorrer o caminho tradicional da luta política, o enfrentamento de textos e ideias, seguindo a clássica tradição dos partidos de esquerda desde o final do século XIX. Desta forma, ele transformou a discordância em uma questão pessoal. E, como a sua figura era intocável, tudo acabava sem ter começado.

A vontade pessoal, fortalecida pelo culto da personalidade, fomentado desde os anos 70 pelos intelectuais, se transformou em obsessão. O processo se agravou ainda mais após a vitória de 2002. Afinal, não só o Brasil, mas o mundo se curvou frente ao presidente operário. Seus defeitos foram ainda mais transformados em qualidades. Qualquer crítica virou um crime de lesa-majestade. O desejo de eliminar as vozes discordantes acabou como política de Estado. Quem não louvava o presidente era considerado um inimigo.

Os conservadores brasileiros - conservadores não no sentido político, mas como defensores da manutenção de privilégios antirrepublicanos - logo entenderam o funcionamento da personalidade do presidente. Começaram a louvar suas realizações, suas palavras, seus mínimos gestos. Enfim, o que o presidente falava ou agia passou a ser considerado algo genial. Não é preciso dizer que Lula transformou os antigos "picaretas" em aliados incondicionais. Afinal, eles reconheciam publicamente seus feitos, suas qualidades. E mereceram benesses como nunca tiveram em outros governos.

É só esta obsessão pelo poder e pelo mando sem qualquer questionamento que pode ser uma das chaves explicativas da escolha de Dilma Rousseff como sua candidata.

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    # por Anônimo - 13 de julho de 2010 às 15:19

    Tenho visto o historiador Marco Antonio Villa em alguns programas de
    entrevistas da Globo News, de nome Painel, mas o texto, em forma de
    artigo, permite uma análise mais apurada. Concordo com a opinião e os
    temores do historiador com os rumos da política brasileira, particular- mente a movimentação das centrais sindicais. Há duas esperanças: a vitó-
    ria de Serra e a ocupação de espaço - numa hipotética vitória de Dilma -
    por parte do PMDB, assunto já abordado na coluna de hoje de Merval Perei-
    ra.

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    # por Anônimo - 13 de julho de 2010 às 19:41

    Professor Villa, o maior líder de oposição ao Hugo Chavez, Alejandro Pena Esclusa, foi detido dentro da casa onde mora com a família pela polícia secreta do governo da Venezuela. A imprensa brasileira está simplesmente IGNORANDO o assunto!! Estamos tomando um caminho muito sinistro, pois se Serra não ganhar a eleição, o Páis rumará a passos largos para se tornar mais uma republiqueta comunista (ou bolivariana se assim preferir). Os fatos são geravíssimos. O senhor precisa avaliar o papel dos jornalistas nesta eleição, pois os portais de notícias estão fazendo de tudo para beneficar a candidata Dilma.
    Fernando José - SP

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    # por José María Souza Costa - 14 de julho de 2010 às 08:53

    Professor,
    primeiro não vejo e nem creio que os portais e noticias estejam beneficiando a candidatura da Dilma. Eu não sou e nunca serei favoravel a Regimes que não seja democratico. Mas, seria em boa hora, a oportunidade, dos Portais de noticias, explicarem melhor, o que aconteceu com o jornalista Herodoto Barbeiro ( a demissão do mesmo) da TV Cultura,sabemos que o TV Cultura é controlada pelo governo do Estado de São Paulo,( PSDB) a um pouco mais de 15 anos no poder, apenas por que perguntou, sobre PEDÁGIOS, ao candidato do partido( PSDB ). Sejamos claros, todos vocês que formam opinião, que induzem as pessoas a pensarem. Vejamos todos os lados, para deixar o leitor ciente do que ocorre. Não está bem explicada, para nós em São Paulo, a demissão do competente Herodoto,e a contratação da Marilia Gabriela, para apresentadora. Disfacatez, não.
    Democracia, SEMPRE.

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    # por Ana Lúcia K. - 14 de julho de 2010 às 22:41

    O nosso prezadíssimo Villa disse tudo!Perfeita mais esta análise.
    lula está descontrolado, já perdeu(há muito tempo) a noção dos princípios básicos que regem um país.
    O BRASIL PODE MAIS! FORA dilma! FORA lula!

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    # por Ed Carlos Ferreira - 16 de julho de 2010 às 19:25

    Sem dúvida um dos seus melhores artigos.
    Vale lembrar que Lula aventou a possibilidade de lançar Luis Marinho a presidência, ou seja, nunca teve a intenção de lançar alguêm com condição de ter vida própria.
    Viu que a Dilma seria um pouco mais palatável e a lançou, no fim das contas o mensalão caiu do céu para ele, pois tirou o José Dirceu do caminho dele.