A falácia da reforma agrária

Este artigo saiu originalmente em "O Globo" na edição de 15 de fevereiro do ano passado. A ideia de recolocá-lo aqui é para ir marcando posição sobre temas importantes e que, por incrível que pareça, não fazem parte do pobre (paupérrimo, na verdade) debate político brasileiro:

A falácia da reforma agrária

17 de fevereiro de 2011
Autor: Marco Antonio Villa

O tema da reforma agrária dividiu o país durante décadas. Desde os anos 1940 foi um dos assuntos dominantes do debate político e considerada indispensável para o desenvolvimento nacional. Diziam que a divisão das grandes propriedades era essencial para a industrialização, pois ampliaria, com base nas pequenas propriedades, o fornecimento de gêneros alimentícios para as cidades, diminuindo o custo de reprodução da força de trabalho e acabando com a carestia.


Por outro lado, o campo se transformaria em mercado consumidor das mercadorias industrializadas. Ou seja, o abastecimento dos centros urbanos, que estavam crescendo rapidamente, e o pleno desenvolvimento da indústria dependiam da reforma agrária. Sem ela não teríamos um forte setor industrial e a carestia seria permanente nos centros urbanos, além da manutenção da miséria nas áreas agrícolas. E, desenhando um retrato ainda mais apocalíptico, havia uma vertente política da tese: sem a efetivação da reforma agrária, o país nunca alcançaria a plena democracia, pois os grandes proprietários de terra dominavam a vida política nacional e impediam a surgimento de uma sociedade livre. Era repetido como um mantra: o Brasil estava fadado ao fracasso e não teria futuro, caso não houvesse uma reforma agrária.

Os anos se passaram e o caminho do país foi absolutamente distinto. A reforma agrária não ocorreu. O que houve foram distribuições homeopáticas de terra segundo o interesse político dos governos desde 1985, quando foi, inclusive, criado um ministério com este fim. Enquanto os olhos do país estavam voltados para a necessidade de partilhar as grandes propriedades — marca anticapitalista de um país que não admira o lucro e muito menos o sucesso — o Centro-Oeste foi sendo ocupado (e parte da Amazônia), além da revolução tecnológica ocorrida nas áreas já cultivadas do Sul-Sudeste.

O deslocamento de agricultores, capitais e experiência produtiva especialmente para o Centro-Oeste ocorreu sem ter o Estado como elemento propulsor. Foram agricultores com seus próprios recursos que migraram principalmente do Sul para a região. Como é sabido, falava-se desde os anos 30 em marcha para o Oeste, mas nada de prático foi feito. E, quando o Estado resolveu fazer algo, sempre acabou em desastre, como a batalha da borracha, nos anos 1940, ou, trinta anos depois, com as agrovilas, na Amazônia.

O épico deslocamento de agricultores do Sul para o Centro-Oeste até hoje não mereceu dos historiadores um estudo detalhado. De um lado, devido aos preconceitos ideológicos; de outro, pela escassez ou desconhecimento das fontes históricas. Como todo processo de desbravamento não ficou imune às contradições — e isto não ocorreu apenas no Brasil. Foram registrados sérios problemas em relação ao meio ambiente e aos direitos humanos, em grande parte devido à precariedade da presença das instituições estatais na região.

Com a falência do modelo econômico da ditadura, em 1979, e a falta de perspectiva segura para a economia, oque só ocorrerá uma década e meia depois, com o Plano Real, as atenções do debate político ficaram concentradas no tema da reforma agrária, mas de forma abstrata. O centro das discussões era o futuro dos setores secundário e terciário da economia. O campo só fazia parte do debate como o polo atrasado e que necessitava urgentemente de reformas. Contudo, a realidade era muito distinta: estava ocorrendo uma revolução, um fabuloso crescimento da produção, que iria mudar a realidade do país na década seguinte.

Entretanto, no Parlamento, os agricultores não tinham uma representação à altura da sua importância econômica. Alguns que falavam em seu nome ficaram notabilizados pela truculência, reforçando os estereótipos construídos pelos seus adversários. É o que Karl Marx chamou de classe em si e não para si. Os agricultores, na esfera política, não conseguiam (e isto se mantém até os dias atuais) ter uma presença de classe, com uma representação moderna, que defendesse seus interesses e estabelecendo alianças com outros setores da sociedade. Pelo contrário, sempre estiveram, politicamente falando, correndo atrás do prejuízo e buscando alguma solução menos ruim, quando de algum projeto governamental prejudicial à sua atividade.

Hoje, o Brasil é uma potência agrícola, boa parte do saldo positivo da balança comercial é devido à agricultura, a maior parte da população vive no meio urbano, a carestia é coisa do passado, a industrialização acabou (mesmo com percalços) sendo um sucesso, o país alcançou a plena democracia e não foi necessária a reforma agrária. A tese que engessou o debate político brasileiro durante décadas não passou de uma falácia.

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    # por Sergio - 5 de janeiro de 2012 às 11:33

    Ainda bem que a reforma agrária não ocorreu. Caso tivesse ocorrido, certamente o agro-negócio não estaria carregando o país nas costas como atualmente.

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    # por Anônimo - 5 de janeiro de 2012 às 14:56

    Villa, apesar do agronegócio estar em expanção, a falta do estado regulador eficiente, faz surgirem vários cartéis. O caso mais absurdo é o setor da citricultura, onde duas empresas fazem o que querem no mercado. Fizessem o mesmo nos eua e já estariam presos a muitos anos.
    Para seu conhecimento, essas empresas manipularam o mercado de laranja e nos últimos 10 anos, sugaram e moeram os pequenos e médios produtores, enquanto os produtores iam quebrando a industria ia comprando fazendas e construindo mega-pomares. Foi uma transferência criminosa de renda.

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    # por Anônimo - 6 de janeiro de 2012 às 12:12

    Algo surrealista é o procedimento do Estado na condução e discussão dos grandes temas brasileiros. E as controvérsias, como um milagre, vão se ajeitando, acontecendo, realizando. Impressiona-me demais como o Brasil consegue encaminhar seus dilemas, ao longo de sua história, pasmem, com certo grau de acerto: Petróleo, industrialização, a não reforma agrária, estabilidade econômica, estatização, divida externa... Chegando, nesse momento, como a sexta economia mundial; sabe-se lá como, é algo Divino!
    A agricultura familiar, o agronegócio, a questão ambiental é mais um dilema para o Estado brasileiro. O Código Florestal é um bom exemplo; sinto um distanciamento abissal da sociedade em relação a esta discussão. Mais uma vez as coisas vão se acomodar, como placas tectônicas, graças a uma combinação de vários elementos sem nenhum apoio racional. A história investigará, se for real, é lógico!

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    # por Francelino Bouéres - 6 de janeiro de 2012 às 12:29

    Algo surrealista é o procedimento do Estado na condução e discussão dos grandes temas brasileiros. E as controvérsias, como um milagre, vão se ajeitando, acontecendo, realizando. Impressiona-me demais como o Brasil consegue encaminhar seus dilemas, ao longo de sua história, pasmem, com certo grau de acerto: Petróleo, industrialização, a não reforma agrária, estabilidade econômica, estatização, divida externa... Chegando, nesse momento, como a sexta economia mundial; sabe-se lá como, é algo Divino!
    A agricultura familiar, o agronegócio, a questão ambiental é mais um dilema para o Estado brasileiro. O Código Florestal é um bom exemplo; sinto um distanciamento abissal da sociedade em relação a esta discussão. Mais uma vez as coisas vão se acomodar, como placas tectônicas, graças a uma combinação de vários elementos sem nenhum apoio racional. A história investigará, se for real, é lógico!

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    # por Renato - 6 de janeiro de 2012 às 17:01

    Ora, Vila. Na entrevista que o Senhor concedeu agora há pouco para a Gazeta o senhor afirmou com todas as letras que "dizer aqui que nós vivemos num Estado plenamente democrático não é verdade", justamente por conta do mau funcionamento das instituições democráticas brasileiras; já neste artigo o Senhor afirma que o "país alcançou a plena democracia e não foi necessária a reforma agrária". Um pouco contraditório, não? As pequenas propriedades, com menos de dez hectares, são muitas, porém ocupam, proporcionalmente às demais classes, pouca área. Já as propriedades com área igual ou superior a mil hectares são poucas, porém ocupam gigantescas e muitas terras. A concentração de terras alcançou níveis absurdos e acaba fomentando ações, não mais isoladas, de grupo como o MST. A violência no campo surge como reação da elite latifundiária, que teme perder suas terras. Raras são as ações pela defesa dos trabalhadores rurais e raros são aqueles que ousam desafiar tal elite, como faz a CPT.

    Para mim a reforma agrária sempre foi e sempre será necessária, ao passo que seria um reforço enorme para as instituições democráticas brasileiras. Pelo seguinte: se luta por uma chamada “reforma agrária de novo tipo”, o que é a perspectiva de uma nova forma de distribuição das propriedades rurais, que atenda a três grandes objetivos. O primeiro é o de satisfazer as necessidades sociais básicas do homem do campo, como alimentação, habitação, saúde e educação. O segundo é o de solucionar parte dos problemas econômicos do agricultor, permitindo sua evolução para uma melhor situação de bem-estar. O terceiro é o de inserir essa nova área produtora no contexto da economia nacional, a fim de aumentar a produção agrícola e a renda regional, gerando um dinamismo que se distribua por toda a comunidade. Para que tal modificação se concretize, é preciso que, além de se dividir a terra, loteá-la em parcelas e instalar o agricultor para cultivá-la, implante-se também uma política de efetivo apoio à pequena e média agricultura. Para isso, é necessária a adoção de numerosas medidas, como, por exemplo: criação de um sistema de crédito agrícola específico para esse segmento, instalação de infraestrutura de escoamento rápido até os principais mercados consumidores da região, adequado sistema de armazenamento para equilibrar a distribuição nos períodos de entressafra e implementação de um sistema de acesso universal às novas tecnologias envolvidas com a produção agrícola. Dessa forma, a reforma agrária poderá realmente ser um elemento de transformação do campo, constituindo-se num novo modelo de se fazer agricultura no país, eficiente social, política e economicamente.

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    # por Anônimo - 9 de janeiro de 2012 às 09:35

    Villa, o comentário que segue nada tem que ver como presente post.Li, na Folha, o seu artigo publicado aos 09/01/2012.Também li, na mesma Folha, o artigo com a despropositada cobrança - ou agresssão - do Jânio de Freitas, na data em que foi publicada - 01/01/2012.A impressão que fica é que para alguns jornalistas, acusações sem provas e todo tipo de conversas de bastidores - e até abaixo deles - podem ser algo confiável.A reputação de pessoas ali envolvidas, sabe-se lá por que razão ou meios ou até segundas intenções, de nada contam.Que se virem para se explicar ou desmintir, mentiras...A meu ver há, por assim dizer, uma birra "incontornável" entre setores do jornalismo com alguns membros do PSDB, em especial contra José Serra e FHC. Suponho, apenas suponho, que seja pela condição de intelectuais, haja vista que sabem escrever, são cultos e articulados, não se curvam ante a arrogância - as vezes ingnorante - de jornalistas pretensiosos e, até cúmplices em ações de comprovada ilegalidade, isso para ser diplomático, é claro!A cultura, sabedoria e independência,para a maioria da imprensa e seus "operadores" é uma ofensa.Preferem a ingorância despótica, caricata,verborrágica, insolente, populista e desinformada de um Lula aos refinados pensamentos e dos escritos de um Fernando Henrique ou de um José Serra.Afinal, ler e entender o vai no pensamento deles pode dar um trabalhão.E certos jornalistas não têm tempo para... ler!!!Certamente, uma fala bucéfala de Lula rende litros de tinta e quilos de papel para ser explicada, por que a fim e ao cabo pode dizer e representar qualquer coisa, inclusive nada!Ah, Villa, acabou que fiz um desabafo!Queria apenas dizer que o admiro - e leio, hehe - pela coragem e pela cultura.Abraço.
    Heli Roberto da Silva
    FORMIGA-MG

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    # por Augusto Ferreira - 9 de janeiro de 2012 às 10:11

    "A ideia de recolocá-lo aqui é para ir marcando posição sobre temas importantes e que, por incrível que pareça, não fazem parte do pobre (paupérrimo, na verdade) debate político brasileiro."
    Quanta arrogância, não sr. professor, mestre, doutor...

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    # por J.A.MELLOW - 9 de janeiro de 2012 às 21:55

    CARO VILLA:
    BELISIMA DEFINIÇÃO DO GRANDE EQUIVOCO DE ARAQUE QUE É USADO COM O TEMA FURADO DA REFORMA AGRÁRIA!
    NÃO PODERIA SER MELHOR, E É UMA PENA QUE NESTE PAÍS NINGUÉM SE ASSUMA INTEGRALMENTE, ATÉ MESMO AS REPRESENTAÇÕES DE CLASSE, COMO É O CASO DA CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA AGRICULTURA QUE TANTO PUBLICA ARTIGOS PRODUZIDOS POR ALGUNS TANTOS ECONOMISTAS COOPTADOS E CERTAMENTE NÃO PUBLICARÁ OU NÃO DIVULGARÁ ESTE SEU ESCRITO,DO QUE DESEJARIA MUITO DEPOIS DIZER QUE ME ENGANEI.
    O PIOR DE TUDO É QUE VOCÊ FAZ UM RELATO DE UM FATO CONCRETO, INCONTESTÁVEL E AINDA APARECEM COMENTÁRIOS VOLTANDO A TECLAS BATIDAS DE IDEOLOGIAS FURADAS QUE SÓ ENGANAM OS IMBECIS OU OS QUE TIRARÃO PROVEITO DAQUILO.

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    # por Cesar Azeredo - 2 de fevereiro de 2012 às 18:39

    Villa, sou seu fã há muito tempo. Porém, é bom que se diga, é preciso equacionar o problema de um grande segmento da sociedade que foi deserdado pela modernidade no campo e excluído da urbanização.
    É sempre a questão da ideologia para atrapalhar: não consigo entender (a não ser o entrave ideológico) porque o(s) governo(s) não promoveram a reforma agrária em torno da cessão de grandes extensões de terra, exploradas por cooperativas e com adoção de maquinaria. Tudo porque esse viés ideológico em torno do "campesino" e sua pequena propriedade (sem condições de subsistência)é ainda uma falácia ideológica.