O PT e uma outra história

Aproveitando o vazio do carnaval, acho que vale a pena republicar este artigo que saiu na FSP de 22 de março de 2004. O debate é sobre como o PT reinventou a história do Brasil do século XX. O pior é que deu certo.


O Partido dos Trabalhadores está completando 25 anos. É um fato digno de registro, se compararmos com outros partidos políticos brasileiros. Afinal, só há pouco mais de meio século podemos falar em partidos nacionais - excetuando os casos do Partido Comunista Brasileiro e da Ação Integralista Brasileira.

Para se afirmar como alternativa histórica da classe trabalhadora, o PT foi construindo uma leitura muito particular da história do Brasil e das lutas operárias. Fez o que outros já tinham feito: reinventou o passado, para que a fundação do partido fosse considerada o marco zero da luta de classes no Brasil. Apagaram da história, sem dó, sete décadas de lutas políticas e econômicas. Os intelectuais petistas foram os principais responsáveis por colocar de ponta-cabeça a história do Brasil. E com a concordância entusiástica da liderança sindical do partido, satisfeita por ser alçada pelos intelectuais como precursora de algo que nunca tinha ocorrido no país: a construção de um partido operário e de um sindicalismo combativo.

Mas haja borracha para apagar tantas lutas. Como exemplo serve a própria história do ABC, berço do partido. Em 1945, o candidato comunista à Presidência da República, Iedo Fiuza, teve 10% dos votos nacionais, porém em Santo André obteve quase o triplo dessa proporção, 28%, deixando em terceiro lugar o candidato da UDN, o brigadeiro Eduardo Gomes. Nas eleições municipais de novembro de 1947, na mesma cidade, os comunistas -já na ilegalidade- elegeram um antigo militante do PCB prefeito. Mas não só: os vereadores comunistas eram maioria nas Câmaras de Santo André, Santos, Sorocaba e São Paulo. Em 1950, apesar do boicote comunista, Getúlio Vargas, candidato à Presidência, teve 84% dos votos em Santo André, quando a média nacional foi de 48,5%.

A tarefa de refazer a história atingiu também o passado das lutas sindicais. O mito fundador alcançou a Consolidação das Leis Trabalhistas. Se é inegável que a CLT foi um instrumento para atrelar os trabalhadores ao Estado, também serviu (e serve) como instrumento de luta dos operários na Justiça do Trabalho. Em vez de contextualizar historicamente a CLT dentro da luta de classes, Luiz Inácio Lula da Silva, em um dos seus arroubos tão costumeiros, preferiu chamá-la de "AI-5 da classe trabalhadora".

A independência e a combatividade da classe operária teriam começado em 1978, no ABC, sob a liderança de Lula. Todo o resto era fruto de sindicalistas pelegos, de oportunistas e populistas. Porém, mais uma vez, esqueceram-se da história. O ABC registrou sua primeira greve em 1906, em Santo André, 72 anos antes da greve dos metalúrgicos de São Bernardo. A região acompanhou e participou pari passu da luta dos trabalhadores de São Paulo nos anos 1910-1930, especialmente o glorioso 1917. Em 1934, os marceneiros de São Bernardo ficaram parados um mês. Dezenas de sindicalistas do ABC foram presos e torturados durante o Estado Novo - e, apesar da redemocratização, não receberam indenização do governo.

Aproveitando o ambiente democrático dos anos 1946/47, greves ocorreram no ABC e, mesmo com a onda repressiva durante o governo Dutra, os sindicatos continuaram lutando. Não devem ser esquecidas as grandes greves da década seguinte -1953 e 1956- e as mobilizações no início dos anos 1960.

Mas a história tem as suas ironias. O PT desprezou a herança revolucionária construída ao longo de sete décadas - era o meio de se afirmar como algo novo, absolutamente original. Hoje, tem dificuldade para justificar aos seus militantes as ações do governo Lula. Ao que parece, encontrou uma saída: desqualificar a sua própria história -assim como tinha feito em relação aos anarquistas, trabalhistas e comunistas. Seus líderes observam com um sorriso de escárnio as fotografias das assembléias que formaram o partido, desprezam seus documentos internos, suas deliberações históricas e ironizam até o vestuário dos participantes dos antigos encontros: hoje o uniforme petista são os ternos, preferencialmente de grife.

Vinte e cinco anos depois, o PT transformou-se em um partido da ordem, controlado com mãos de ferro pelos senhores de meia-idade que estão a caminho de formar uma gerontocracia. Nada mais triste do que a fotografia publicada por esta Folha, em fevereiro, de meia dúzia de petistas - todos na faixa dos 50 a 55 anos- em torno de um bolo de aniversário, numa pequena sala fechada. Conservadores, não seduzem mais os jovens; isolados, não conseguem mais mobilizar a massa petista; aburguesados, não precisam mais da participação popular.

A classe operária não foi para o paraíso, mas os líderes petistas foram. E como. Agora transitam com intimidade entre a plutocracia tupiniquim.

A história do PT incomoda o PT. Enquanto os velhos militantes abandonam o partido, os oportunistas preenchem com avidez as fichas de filiação. Não precisam mais da história ou de qualquer justificativa ideológica. A adesão é pragmática: querem cargos, poder e, se possível, alguma sinecura.

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    # por Escatopholes - 8 de março de 2011 às 09:02

    Não adianta espernear. O destino de todos e de tudo é: nascer, crescer e morrer.
    O PT está na fase de crescimento já com tendência de morte.

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    # por Anônimo - 9 de março de 2011 às 19:51

    Belo texto, Villa. Ainda há cabeças pensantes no Brasil. Parabéns!

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    # por Regina Brasilia - 10 de março de 2011 às 19:31

    Ser petista não é uma questão de filiação partidária, hoje. Não depois de 8 (e indo para 12) anos de desgoverno petista - a Era da Idade das Trevas.

    Ser petista é um estado de espírito. Nada elevado.

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    # por j.a.mellow - 12 de março de 2011 às 23:17

    Felizmente ou infelizmente essa é a verdade. Digo isso pois, se por um lado estamos vendo um partido querendo se imortalizar pela paralisia cerebral de uma nação, apagando da sua memória a propria antiga organização socio-politica de um passado não muito distante, vemos também com satisfação a possibilidade de sua implosão.
    É verdade meu caro Villa. Que existe, existe; um complô organizado dentro do partido com esses métodos bolchevistas tanto de aparelhamento quanto de uma ruptura entre culturas e gerações. Mas como isso hoje, por mais que seja tentado, como está sendo na estrutura educacional principalmente, por outro lado vai sendo minado pelo lugar comum em que se meteram esses novos situacionistas. Afinal, e graças a essas posturas, esse mesmo povo os estão vendo como os mesmos de sempre.

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    # por barbarah.net - 15 de março de 2011 às 06:08

    O dinheiro falou mais alto.