O Nordeste e as eleições

Um dos bons temas pós-eleição é o papel do Nordeste no conjunto da votação recebida por Dilma. No meu livro "Vida e morte no sertão. História das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX" (Ática, 2002, 4@ edição) trato da relação do poder central com a região e da questão política. Em dois artigos publicados na Folha de S. Paulo, ambos de 2006, voltei ao tema. Basta acessar o Google e digitar: "Cantar a gente dura e ensurdecida" e "Canudos e os novos territórios lulistas". Nestes relaciono o Bolsa Família com a eleição de 2006, ainda meio no calor da hora. O segundo artigo foi escrito em Canudos, onde estive entre os dois turnos da eleição presidencial, em outubro de 2006.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 16:21

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    Texto publicado no Jornal Folha de São Paulo, 2006

    Canudos resiste. A pequena cidade fundada por Antonio Conselheiro no nordeste da Bahia em 1893 e destruída quatro anos depois continua abandonada pelo poder público. Reconstruída no início do século 20, após o retorno de parte da população conselheirista, a cidade manteve-se isolada até a visita de Getúlio Vargas, em outubro de 1940, e a decisão governamental de construir um açude, obras que terminaram em 1969, obrigando a população a se transferir para o povoado de Cocorobó. (cont)

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 16:35

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    Hoje o município tem uma ampla área territorial (2.985 quilômetros quadrados) e uma população de 13.760 pessoas. É paradigmático para tentarmos entender os resultados da eleição presidencial e a grande vitória obtida por Luiz inácio Lula da Silva na região do nordeste.
    A Bahia tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH): está em 22 lugar, entre os 27 Estados. A cidade melhor classificada é a capital, Salvador: ocupa o 475 lugar entre os municípios brasileiros. A região de Canudos é a mais pobre do Estado.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 16:45

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    Isolada pelas péssimas estradas, sem um eficaz sistema de telefonia (celular não tem sinal na área) e assolada pela seca ( o índice pluviométrico do município é um dos mais do estado), os canudenses sobrevivem no lilite da pobreza. O poder público está ausente: há somente uma agência do Banco do Brasil (e que funciona apenas 9h às 12h).
    O Produto Interno Bruto (PIB) é pouco mais de R$ 32 milhões.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 16:54

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    O número de pessoas com registro na carteira profissional não chega a 200 (não há condições de pagar salário mínimo e muito menos os encargos sociais). No município não há nenhum trator e o principal meio de transporte são as motos (quase 300).
    A cidade depende do Fundo de Participação dos Municípios (recebe cerca de R$ 3,5 milhões, pois a receita dos impostos é mínima: de IPTU foi arrecadado apenas R$ 8 mil.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 17:03

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    Há dois hospitais, cada um controlado por um dos coronéis da cidade. Ambos atendem pelo SUS. Em um ano ocorreram 13.563 internações, a média de uma por habitante (segundo os dados do IBGE),apesar de ter 62 leitos, o que dá uma média de 218 internações por leito (a cidade tem 13 médicos, parte não reside no município).

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 17:12

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    Canudos vive de uma agricultura de baixíssima produtividade, uma pecuária baseada na criação de bode e de pequeno comércio. Apesar do açude de Cocorobó, com capacidade de armazenar 245 milhões de metros cúbicos de água, metade da cidade não recebe em sua casa o precioso líquido.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 17:20

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    Grande parte das águas estão salinizadas e o pequeno distrito irrigado (com a presença de 150 famílias) está em péssimas condições, com a canalização arruinada, fazendo com que a renda média de cada família gire em tornode um salário mínimo mensal, segundo dados do pesquisador Luiz Paulo Neiva da Universidade da Bahia.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 17:32

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    Mesmo com a melhoria dos índices de escolaridade, a maior parte dos jovens não tem trabalho fixo. Quando trabalham, vivem de bicos. Não há indústria, atividade agrícula ou comercial que gerem empregos em quantidade suficiente para absorver a força de trabalho.
    O lazer é inexistente, a gravidez precoce ocorre em escala considerável e a única "diversão" são os bares. Só na principal rua, a avenida Jucelino Kubitschek, em três quarteirões há uma dúzia de bares. O alcoolismo atinge parte da população, assim como o consumo de drogas.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 17:56

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    Foi nesta espécie de microcosmos do sertão nordestino que Lula obteve uma folgada vitória no primeiro turno, com 68,4% dos votos, e no segundo ampliou ainda mais a votação, obtendo 78,06%.
    Alckmin conseguiu 27% no primeiro turno e caiu no segundo para 21,94%. Para governo estadual, o candidato petista, Jaques Wargner, obteve a maioria absoluta dos votos: 54,7%, em grande parte produto da "onda Lula".

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 18:06

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    As eleições romperam o domínio dos dois políticos que apresam a cidade, um do PFL, o atual prefeito (Vavá), e o outrodo PSDB, ex-prefeito (Zito), que se alternam no poder desde a emancipação do município, em 1985. Na eleição presidencial tinham o mesmo candidato, Geraldo Alckimin, e foram derrotados. Mas o que chama a atenção é o número de eleitores da cidade: 10.655, isto com uma população de 13.760 pessoas, muito acima da média nacional.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 18:17

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    O que reforça a necessidade de um recadastramento eleitoral, principalmente se for correta a informação do ministro Carlos Veloso, ex-presidente do TSE, de que no Brasil há 10 milhões de títulos fantasmas (ver Folha de São Paulo de 16 de setembro de 2006).
    É difícil encontrar alguém que não seja beneficiado pelo Bolsa Família. Se em maio eram 1673 famílias inscritas no programa, em cinco meses, às vesperas da eleição, este número saltou para 2.246 :

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 18:28

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    :"Não tenhos emprego. Tenho três filhos. Meu marido só agora arranjou um trabalho. Preferia estar trabalhando. Bolsa Família é bom mas preferia emprego", diz Maria José Varjão, 29 anos, estudando o segundo ano do ensino médio. Em 1998 votou em FHC, em 2002 em José Serra, já em 2006 escolheu Lula. Participava dos programas sociais do governo anterior. Dos seis irmãos, três migraram, dois para São Paulo e um para Salvador.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 18:37

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    Graças a um deles construiu uma casa com o dinheiro que manda mensalmente. Mora ao lado da casa da mãe, aposentada, e que acabou se transformando em arrimo da família. "É o único dinheiro garantido lá em casa. Meus outros irmãos não têm trabalho fixo, e quando alguém consegue algo é provisório: aqui ninguém é registrado", diz ela. A professora Maria Claudia Jesus da Silva, 26 anos, nasceu em Canudos. É solteira.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 18:48

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    Tem nove irmãos. Cinco migraram para Juazeiro, Petrolina e Salvador. Migraram "porque não tem trabalho". O pai também recebe aposentadoria: "Sem ela não sobrevivemos". Uma tia está inscrita no Bolsa Família: tem nove filhos. A professora discorda do programa. Diz que "é um dinheiro fácil", não precisa "suar", diz que muitos que recebem não trabalham por vadiagem. Votou em FHC em 1998, mudou para Lula em 2002 e neste ano votou novamente nele.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 18:57

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    O padre Livio, da Igreja Católica, um italiano que está há vários anos em Canudos, considera que o governo Lula pouco fez pela região. Reclama que faltam investimentos. A presença do Estado manifesta-se através do programa Bolsa Família. Tem esperança de que algo pode melhorar. A ação da igreja é muito importante organizando a população na construção de cisternas, apoiando programas de saúde preventiva e no incentivo à agricultura familiar.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 19:07

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    Na semana anterior ao segundo turno, no sábado à noite teve até carreata.Com fogos. Claro que pró-Lula. Ninguém dizia que ia votar em Alckmin. E não é exagero. A imagem que os canudenses têm do candidato opositor é de alguém muito distante do sertão. Muitos disseram nem sequer entender o que ele fala, outros que só o conhecem agora,na eleição. Dizem que Lula foi o único presidente "que olhou para nós".

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 19:18

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    Reconhecem que falta emprego, falam da corrupção (todo mundo rouba, mas ninguém provou que Lula é ladrão"), estabelecem identidade com a sua história ("Ele sabe o que é seca, o que é sofrimento") e relacionam Alckimin com ACM.
    O semi-árido nordestino virou território lulista. Sem estabelecer um diálogo político com os milhões que sobrevivem na região, a oposição sofrerá outra grande derrota na próxima eleição.

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    # por barbarah.net - 4 de novembro de 2010 às 19:25

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    Como disse uma canudense: "Sei que Lula não vai ser candidato em 2010. Votarei em quem ele mandar".


    Canudos e os Novos Territórios Lulistas
    Marco Antonio Villa 2006

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    # por Lucas - 4 de novembro de 2010 às 21:55

    Igualzinho o interior de São Paulo (São Carlos, por exemplo), ou do Paraná (Londrina por exemplo), ou de Santa Catarina (Joinville, por exemplo).
    Sabe professor Villa, o que não me entra na cabeça? É que o Muro de Berlim caiu em 1989, e em 2010 dentro de universidades, ainda existam as viúvas do muro...

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    # por Ana Lúcia K. - 5 de novembro de 2010 às 02:26

    Valeu! Barbarah!
    Parabéns!, pela iniciativa de postar o texto do Villa, pois procurei na net e não encontrei nada!
    Infelizmente, é nesta região, onde "milhões sobrevivem" que os governos só aparecem em época de eleções. Eles não estão preocupados com as pessoas, se elas tem escola, hospital, trabalho com carteira assinada,
    etc, ou se o IDH é péssimo. Eles só se interessam pelos votos! É aí que fico pensando... cadê o lulla? Elle conhece muito bem esta região, veio de lá, sabe das dificuldades do povo e teve 8 anos para promover um mínimo de desenvolvimento e...vem encher a boca para falar de "trem bala", "banda larga", "vants"?! É o fim! Elle deveria ficar envergonhado por tamanho despautério. E mais triste ainda pela submissão declarada pelas pessoas, pela fragilidade exposta, pela necessidade que lhes é imposta e até pela humilhação de receber "um dinheiro fácil", que "não precisa suar". "Bolsa Família é bom mas preferia emprego", escutou dilma?!

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    # por Anônimo - 6 de novembro de 2010 às 09:13

    Muitas pessoas falam e comentam sobre o nordeste. Mas, antes de falar,criticar, etc, uma coisa é necessário: conhecer "im loco " , viver, sentir a realidade nordestina de perto, etc., só assim estaremos capacitados para comentar sobre aquela gente e região. O resto é papo furado.