A história das constituições brasileiras (XV)

O novo livro e uma entrevista publicada na revista Leituras da História:

Brasil Legal ou Brasil Real?
Em seis capítulos, Villa nos mostra os momentos históricos de cada uma das sete constituições que vigoraram no país

Por Morgana Gomes / Montagem: Fabiana Neves

Ao relatar, em seu novo livro, as sete constituições do Brasil, Marco Antonio Villa vê na justiça ineficaz o grande desafio nacional. Tal como o historiador - que é bastante objetivo -, sua obra traz um relato direto sem o pretensioso e prolixo "juridiquês". De leitura fácil, além de extremamente elucidante, também consegue ser divertida, em virtude dos diversos absurdos que foram garimpados durante a fase de pesquisa para sua composição.

Em seis capítulos - e um sétimo contendo um detalhado "não-elogio" ao Supremo, "porque o Judiciário é, de longe, o pior dos três Poderes" -, Villa nos mostra os momentos históricos de cada uma das sete constituições que vigoraram no país, as leis bizarras, as pegadinhas jurídicas e a distância entre as leis e a realidade do povo brasileiro.

Entre outros tópicos, o autor destaca, por exemplo, que a primeira carta constitucional, de 1824, ignorou por completo a escravidão, com a qual conviveu por sete décadas; que na Constituição de 1891 foi instituído um feriado nacional - em 8 de dezembro - em homenagem a "hermana" Argentina. Mas, além desse, o novo governo republicano instaurou tantos outros que foi necessário criar uma cartilha para explicar o significado de cada um deles.
Já em 1934, o famoso termo "segurança nacional" foi incluído em nossas leis. Em consequência, toda e qualquer lei abusiva poderia se firmar na constituição, desde que apoiada na segurança nacional do país. Ainda durante o governo Vargas, foi criada a lei que aboliu toda e qualquer bandeira que não fosse a do Brasil e, em 19 de abril de 1938, todos os pendões e símbolos regionais foram queimados em praça pública, pois o brasileiro deveria defender somente um símbolo nacional.

Mais recentemente, em 1967, no auge do regime militar, decidiu-se que "toda pessoa física e jurídica é responsável pela segurança nacional" - um simples truque, segundo o autor, para prender qualquer cidadão, sob qualquer pretexto, por falta gravíssima.

Apesar de curioso e instigante, na entrevista que segue, nota-se que o trabalho do historiador ultrapassou o de uma profunda pesquisa de nossas leis para se tornar uma verdadeira aula de História sobre o judiciário do Brasil, principalmente para o leigo.

Leituras da História - De início, a que público se destina seu livro?
Marco Antonio Villa - Ao público em geral. Não é um livro de Direito Constitucional. É um livro de historiador, que politiza a história das nossas constituições.

LDH - O que há de comum entre as sete constituições que o Sr. analisou?
Villa - Uma dissociação entre o Brasil legal e o Brasil real. Temos um histórico de afastamento entre a lei e a realidade concreta. O livro acentua este fato dando inúmeros exemplos.

LDH - Cite um deles, um exemplo entre lei para um Brasil legal em detrimento do real.
Villa - A Constituição de 1824, por exemplo, omite a escravidão. Isso quando a força de trabalho escrava era, na primeira metade do século 19, dominante da esfera do trabalho.


LDH - Quais as maiores contradições que foram se repetindo desde a Carta de 1824?
Villa - Um Estado forte e uma sociedade civil extremamente frágil. As nossas constituições concederam ao Estado inúmeros poderes. O cidadão fica quase sempre à mercê do poder autocrático do Estado.

LDH - Essa contração de poder pode ser caracterizada como "má fé" dos políticos do país?
Villa - Pode!

LDH - E quem ganhou com isso?
Villa - O "andar de cima", os poderosos. Temos uma estrutura de Estado que fortalece os interesses corporativos em detrimento dos interesses dos cidadãos.

LDH - Há alguma inovação na última constituição brasileira?
Villa - A conquista das amplas liberdades. Acho o artigo 5º um dos mais importantes da história constitucional brasileira. É o artigo de ouro da Constituição. Apesar da prolixidade é inegavelmente a melhor constituição que já tivemos.

LDH - Do que se trata?
Villa - Ele garante as amplas liberdades de organização, manifestação e opinião.

LDH - Em que momento as Emendas Constitucionais podem ser usadas para burlar a Carta Máxima da nossa nação?
Villa - O maior problema da Constituição de 1988, por exemplo, é a prolixidade; uma doença nacional, diga-se. Algumas vezes, o texto constitucional parece um programa de governo. Por ser detalhista, acaba levando às revisões constitucionais, às emendas. Porém, não considero que o detalhismo seja um grande problema. A questão central é o mau funcionamento dos poderes, principalmente do pior deles, o Judiciário.

LDH - Como o Judiciário funciona e como deveria funcionar?
Villa - Funcional mal, defendendo os poderosos. Basta ver a composição da população carcerária. Deveria ser transparente, rápido, simples e inteligível.

Leituras da História - De início, a que público se destina seu livro?
Marco Antonio Villa - Ao público em geral. Não é um livro de Direito Constitucional. É um livro de historiador, que politiza a história das nossas constituições. - Mesmo com todas as constituições e a suposta evolução histórica do nosso país, o Brasil ainda é país informal?
Villa - Nunca conseguimos colocar em prática as nossas leis. Deve ser recordado que o nosso aparato legal é uma bagunça. Os nossos juristas, em sua maioria, estão mais para humoristas de comédia pastelão, infelizmente.

LDH - O Sr. pode dar um exemplo da dissociação entre o texto legal das nossas constituições e a realidade brasileira ao longo dos anos?
Villa - A Constituição de 1946, por exemplo, garantia o direito de greve, que nunca foi regulamentado, isso entre tantos outros exemplos.

LDH - E nada se fez a respeito? Ninguém critica ou aponta essas falhas?
Villa - Poucos. Vai passando o tempo e o tema cai no esquecimento da elite política. A maior parte da população nem tem ideia destes direitos.

"Não é exagero afirmar que os últimos 200 anos da nossa história têm como ponto central a luta do cidadão contra o Estado arbitrário. E, na maioria das vezes, o Estado ganhou de goleada"

LDH - Essa dicotomia política tem interesses partidários ou é ignorância, imaturidade social e política mesmo?
Villa - Política no Brasil nunca foi de interesse da maioria da população. É visto como algo chato e distante do cotidiano, infelizmente. Não temos tradição de auto-organização, de defesa de direitos. Na verdade, a maioria da população sequer sabe o que são direitos e deveres.

LDH - O Sr. poderia dar mais exemplos de absurdos no texto constitucional?
Villa - A Constituição de 1891 faz citação nominal a D. Pedro II e Benjamin Constant. Isso não existe em nenhum país politicamente sério. A de 1946 isenta jornalista de imposto de renda e de pagar IPTU! A de 1988 diz que o Estado deve proteger os esportes genuinamente nacionais. Quais? O futebol? Este não é nacional. O vôlei? Também não é. Mas este é um assunto constitucional? Claro que não. É a eterna confusão entre um texto constitucional - que deve ser enxuto - e a legislação ordinária.

LDH - Em sua opinião, não deveria existir uma relação intrínseca entre as leis e o contexto histórico social vivenciado no momento de sua elaboração? Por que isso acontece parcialmente?
Villa - Deveria. Mas não foi o que ocorreu. Vivemos de espasmos políticos, de raríssimos momentos de mobilização. A nossa sociedade vive anestesiada, distante da política, tem receio de participar, reivindicar.

LDH - O Sr. fala de luta do cidadão contra o Estado que, por sua vez, sempre ganha a disputa. Por que isso acontece?
Villa - É a questão que envolve o direito de livre organização, manifestação e opinião. A repressão a esses direitos marcou quase 200 anos da História do Brasil, desde o século 19 até hoje.

LDH - O que favorece esse paradoxo? A constituição não deveria organizar e garantir os direitos dos cidadãos?
Villa - Não necessariamente. A Constituição é produto do estágio de luta política em cada país. No nosso caso, foi muito mais um pacto entre as diferentes frações da elite dominante, do que um contrato social entre o Estado e os cidadãos.

LDH - Se o povo conhecesse a constituição poderia exigir mudanças em relação à falta de regulamentação constitucional?
Villa - Através da auto-organização. Este é outro problema: a nossa sociedade é desorganizada, invertebrada.

LDH - Politicamente desorganizada, é isso? Ou essa bagunça não é tão pontual e atinge outras áreas da sociedade?
Villa - É desorganizada, desinteressada da política. Basta comparar, por exemplo, com os nossos vizinhos do Prata.

LDH - O senhor diz que as leis votadas são ideais para um país imaginário e não para o Brasil real...
Villa - A questão é que também somos vítimas de um bacharelismo inconsequente, oco, vazio, mera cópia do que ocorre na Europa ou nos EUA.

LDH - O Sr. também diz que a última constituição não é efetivamente colocada em prática. O que impede que isso aconteça?
Villa - Deve-se principalmente ao STF, que não cumpre as suas atribuições. A atual composição do STF é uma das piores da história. É mais um ajuntamento de militantes ou simpatizantes do PT do que juízes de uma Suprema Corte.

LDH - Neste momento está havendo muita polêmica com relação à atuação da corregedoria. Os juízes estão mobilizados contra a investigação?
Villa - A ação da corregedoria do CNJ é fundamental para o destino democrático do Judiciário. Do jeito que está o Judiciário fica muito distante de ser um poder democrático, defensor do cidadão e, principalmente, da Constituição.

LDH - Existe solução para os problemas renitentes na Constituição atual?
Villa - Gostaria de deixar claro que as eventuais falhas poderiam ser sanadas pela interpretação do STF. O problema é que temos um péssimo STF, infelizmente.

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    # por Anônimo - 13 de fevereiro de 2012 às 22:15

    Professor Marco Antonio Villa meus parabéns por enfrentar o judiciário brasileiro. Gostei também dos seus comentários no jornal da Cultura sobre a greve dos policiais militares que o governo nos 25 (vinte e cinco) anos de democracia não cuida da polícia como um todo e vai empurrando com a barriga. Parabéns.

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    # por Anônimo - 14 de fevereiro de 2012 às 00:09

    Sr. Villa, boa noite
    Parabéns pelo seu Blog, artigos sempre muito bons.
    Neste, não sei se só a mim, causou a impressão de continuarmos reféns eternamente desse sistema repugnante de política de clube fechado, com sórdidos associados blindados e amparados por emendas estatutárias do clube por outros atores também blindados com transgressões a constituição, e a única saída para nós pobres mortais seria a politização da sociedade e sua organização. Se foi isso mesmo a mensagem da entrevista, precisaremos de milagres! Eu me rendo........

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    # por Anônimo - 14 de fevereiro de 2012 às 10:49

    Sr. Vila
    Acompanho seu blog, e bem como seus comentários no Jornal da Cultura.Alias, com o seus comentários que deveriam ser mais constantes no jornal, só enriquece o telejornal. Compartilho com o Sr. com relação ao Supremo, pois sinto vergonha quando acompanho uma de suas sessões. Parabens por suas atitudes em seus comentários.
    um abraço

    rubens alves cabral
    Guarulhos-Sp

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    # por Carlos F. - 14 de fevereiro de 2012 às 16:15

    Tenho acompanhado suas últimas entrevistas, e creio que ele bota o dedo no nervo exposto ao indicar o judiciário como a central de todos os males. Acho graça quando alguem se refere, com voz grave, empostada e muitas vezes embargada, ao "Estado Democrático de Direito".... Não é preciso ir longe: e os precatórios? Sentenças transitadas em julgado, acintosamente ignoradas! O crédito não pode nem ser usado para pagamento de impostos devidos ao mesmo devedor!

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    # por Anônimo - 15 de fevereiro de 2012 às 16:17

    Prof. Villa

    Você deve ter visto o Sr. Cesar Peluso dizendo, durante o julgamento da liminar da AMB (podre) contra o CNJ, que o STF atual era o MELHOR QUE O BRASIL JÁ TEVE. Nessa hora, me lembrei muito da sua afirmação de que este é o PIOR STF DA HISTÓRIA DO BRASIL, feita no último capítulo do seu livro e também em uma de suas participações no Jornal da Cultura - ou outra entrevista na TV, agora não lembro qual.

    Faça isso sempre, professor, é o que lhe peço. Não é possível aguentar um STF onde metade das Suas Excelências se prestam a sustentar no governo um partido delinquente como o PT, virando as costas para a Constituição e demais leis vigentes. Me sinto, como muitos e muitos brasileiros, refém de um bando.

    Muito obrigada pelo seu trabalho.

    Fernanda

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    # por Blog do Professor Tim - 21 de fevereiro de 2012 às 12:26

    Quero comunicar ao melhor historiador vivo do Brasil, Marco Antonio Villa, a postagem de sua entrevista sobre livro constitucional seu. Excelente tratado constitucional. Parabéns, Vila.
    Saudações Professorais do Blog do Professor Tim ou timraimundo.blogspot.com