Discutindo o Nordeste (II)

Foi a minha rélica. Saiu na edição da FSP de 22 de janeiro de 2004.


Sertão, sempre a mesma história

MARCO ANTONIO VILLA

O doutor Pangloss, célebre personagem de Voltaire, imaginava viver no melhor dos mundos. Percorreu várias regiões da Europa e, tudo indica, atravessou o oceano Atlântico. Chegou até Fortaleza e instalou-se no confortável prédio do Banco do Nordeste do Brasil, mais precisamente no gabinete do presidente.
Lá aconselha diariamente o economista Roberto Smith, tal qual fez com Cândido, dizendo que uma crítica não passa de "especulação imaginária e preconceituosa" e que a chegada de uma grande seca nada mais é do que um "vaticínio catastrofista", como escreveu Smith na edição da Folha do último dia 15. Alertar para a gravidade da situação econômico-social do sertão é, para o economista, fazer o jogo "dos oligarcas nordestinos", pois o Nordeste "não é um capítulo à parte dos problemas nacionais". Nesse caso, vale a pena perguntar por que permanece existindo a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e o BNB.


No reducionismo petista, ter uma política para o Nordeste, principalmente para o semi-árido, é fazer o jogo das oligarquias


Smith não passa de um simples porta-voz do descaso com que o governo Lula trata o Nordeste. Ninguém pode ficar surpreendido pela falta de um projeto: no programa do candidato não havia sequer uma menção especial à região. O atual governo, como já fez em outras questões -vide a reforma da Previdência- identifica a necessidade de um tratamento diferenciado para o Nordeste em relação às regiões desenvolvidas como uma herança maldita do varguismo. Afinal, o BNB foi criado no segundo governo Vargas (1952), e na década de 50 o Nordeste se transformou em um dos principais temas da agenda política. No reducionismo petista, ter uma política para a região, principalmente para o semi-árido, é fazer o jogo das oligarquias. Presume-se que a existência no Nordeste dos piores indicadores socioeconômicos do país deva ser mera coincidência.
Para retirar o semi-árido da crise é fundamental a ação do Estado. O Ministério da Integração Nacional recebeu em 2003 apenas 30% das verbas aprovadas no Orçamento da União. Mesmo assim, Ciro Gomes não reclamou, não lutou pela liberação do total dos recursos, que já eram insuficientes. Manteve-se bem comportado, aguardando que na reforma ministerial possa alcançar um posto mais destacado. Pouco fez no ano passado, não buscou concatenar a ação das diversas agências federais que atuam na região, não visitou o semi-árido, não incentivou nenhum trabalho comunitário. Em suma, destacou-se, paradoxalmente, pela omissão, como se quisesse fugir da responsabilidade, em um jogo de esconde-esconde, uma espécie de Wally caboclo.
É possível obter resultados consideráveis, basta que haja um planejamento integrado para a região. Como? Coordenando a ação de BNB, Sudene, Dnocs (Departamento Nacional de Obras contra as Secas) e Embrapa, evitando a justaposição de investimentos, diminuindo o número de funcionários, priorizando as atividades-fim, evitando o desperdício na aplicação das verbas. E, principalmente, fazendo os funcionários trabalharem com disposição, integrados em um grande esforço de transformação da região. O exemplo tem de vir de cima: os diretores e presidentes dessas agências têm de sair dos gabinetes refrigerados, ir ao semi-árido, conversar com a população, visitar as experiências exitosas de diversas ONGs, enfim, vivenciar a situação de miséria da região, sentir na própria pele as agruras que atingem milhões de sertanejos. Observar que é possível resolver o problema do consumo doméstico de água para milhões de famílias com a construção de cisternas, que deve ser incentivada a agricultura seca (defendida desde a metade do século passado por Guimarães Duque) e a criação de cooperativas, que nem sempre o problema é a falta de água ou de terra. Muitas vezes faltam assistência técnica, crédito e condições para comercializar a produção. Mas para que tudo isso que parece tão simples aconteça é preciso vontade política e um pouco de ousadia.
A questão central é que o atual governo não tem um projeto para o Nordeste. Na ausência de uma proposta original foi desenterrada a malfadada idéia de transpor as águas do rio São Francisco para o semi-árido de três Estados. O ministro Ciro Gomes mantém um silêncio obsequioso, porém os olhos dos donos das empreiteiras brilham à espera dos bilhões de dólares que serão gastos em uma obra dispendiosa, inútil e danosa ao meio ambiente. Enquanto o governo não se decide sobre o que fazer, milhões de sertanejos estão à espera de uma grande seca que deve se iniciar entre 2005-2006. E aí, como já vimos desde 1877-1879, quando morreram 500 mil sertanejos, assistiremos a um trágico filme: ocorrerá um desfile de horrores, surgirão campanhas de solidariedade, teremos saques e o governo federal anunciará a organização de frentes de trabalho. A única diferença é que o presidente visitará as áreas mais atingidas pela seca e vai se emocionar com o drama, recordando o seu passado familiar. E tudo continuará na mesma, como se no sertão não fosse possível mover a roda da história.




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    # por barbarah.net - 27 de fevereiro de 2011 às 15:29

    O geólogo Aziz Ab'Saber condena o projeto da transposição do Rio São Francisco...

    - Os críticos dizem que as discussões estão sendo feitas a toque de caixa.\\\ O governo diz que todas as etapas estão sendo discutidas.
    - Os movimentos sociais argumentam que os maiores beneficiados serão os grandes produtores e empresas ligadas a grandes projetos como o Ceará Steel. Os pequenos agricultores poderão acabar perdendo recursos.Eles questionam também o número de pessoas beneficiadas. \\\ Os idealizadores dizem que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas e que a irrigação de polos agrícolas aquecerá a economia e aumentará o número de empregos.
    - Os críticos dizem que há alternativas mais baratas como cisternas para mitigar os problemas da seca. \\\ Para os defensores, as cisternas não resolveriam o problema. Segundo seus calculos, um milhão de cisternas podem armazenar 23 milhões de metros cúbicos. Já a transposição conseguirá levar 35 vezes mais água para quem precisa.
    - Os ecologistas questionam o projeto que pode causar danos para a fauna regional como aconteceu com a construção do reservatório de Sobradinho. Serão desmatados 430 hectares. \\\ Os idealizadores dizem que o projeto prevê a revitalização das margens do rio São Francisco e que o tratamento de água pode diminuir a poluição nessas águas, o que ajudaria o ecossistema.
    - Alguns acreditam que a transposição pode acabar com a perenidade de alguns afluentes. \\\ O governo argumenta que apenas 1% do volume do reservatório irá ser usado na transposição.
    (Luiz Indriunas-UOL)

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    # por Anônimo - 28 de fevereiro de 2011 às 15:20

    Respostas:

    1. A SUDENE existe porque é um cabidão de empregos
    2. Concordo com quem disse isso: Alertar para a gravidade da situação econômico-social do sertão é, para o economista, fazer o jogo "dos oligarcas nordestinos", pois o Nordeste "não é um capítulo à parte dos problemas nacionais"
    É assim que os eternos sanguessugas oligarcas nordestinos vão conseguindo o dinheiro produzido em outras regiões do país para o seu próprio denefício. Passa-se a impressão de que é preciso rios de deninheiro para o NE quando na verdade esses rios de dinheiro acabam nos bolsos dos parasitas mandatários do NE, que também incluem os conhecidos políticos.

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    # por Bruno Justino do Nascimento - 1 de março de 2011 às 12:36

    Olá Villa! Chega de falar do LULA! Ele não foi tão ruim para o nordeste se comparado a outros presidentes! Vamos em frente e parar de republicar artigos de 2000 e bolinhas, estamos em 2011 e gosto muito de suas críticas!

    Abraços

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    # por j.a.mellow - 5 de março de 2011 às 11:36

    Meu caro Marco A.Villa. Acompanho sempre suas aparições no Jornal da Cultura e leio o seu blog. Fiz esse comentário abaixo porque achei oportuno:

    Eu ainda continuo achando que, pelo menos na conjuntura atual não se devia nunca pensar e não deveria nem ter sido pensado em querer desenvolver agricultura no Nordeste, pelo menos até onde a vista alcança.
    Na época da criação da Sudene, acho que no iniciozinho da década de 50, os técnicos que para cá vieram sob a coordenação de Celso Furtado deram como receita para o semi-árido a retirada da sua população para outros locais e diga-se, eram bem menores que hoje. Após todo esse crescimento e emigrações do campo para as cidades do próprio nordeste, houve uma distorção maior ainda, descaracterizando-a como região agrícola. Hoje ela é uma região eminentemente assistencialistica se assim podemos chamar.
    Fazendo um parêntese aqui houve também um erro histórico imperdoável lá pelo governo de Jucelino e até um pouco antes, na definição do parque industrial metalomecanico em que este deveria ter sido alocado nas regiões do semi-árido nordestino, deixando o sul com sua vocação natural para a agricultura, equilibrando-se o pais, e não deixando um dos filhos órfão de pai e mãe.
    Isto, se olharmos ainda com uma lente de aumento, poderemos verificar o que teríamos evitado, de problemas com a emigração que passou a existir do Nordeste para o Sul e que hoje estamos pagando a conta.
    Voltando ao principal, as terras do nordeste são localizadas em sua grande maioria sobre rocha cristalina, altamente problemática para a consecução de projetos da agricultura moderna, mesmo em se tratando de irrigação que por sua vez não viria a atender com eficiencia de custo/ beneficio se comparadas às utilizadas pela agricultura do Brasil Central de hoje.
    Também, isto tudo que eu falei é uma questão de hora e lugar, pois estamos falando do País Brasil e não de um País chamado Nordeste, como muitos ainda assim o vêm.
    Hoje, passados todos esses anos, continuo achando que não deveriamos incentivar o aumento democráfico do Nordeste e até tentar uma forma de desestimulá-lo; e industrializá-lo.