De gestora a faxineira
MARCO ANTONIO VILLA
O Globo - 23/08/2011
O governo é pródigo na construção de versões. Nos primeiros meses do ano, a presidente Dilma Rousseff foi transformada, da noite para o dia, em uma genial gestora pública. Falava-se que ela não aparecia em público porque priorizava o trabalho administrativo. Era uma devoradora de relatórios. Exigia o máximo dos seus ministros. Conhecia detalhadamente os principais projetos do país. Era tão diferente de Lula...
O impressionismo político, típico do Brasil, vigorou por três meses. Foi o prazo de validade dado pela realidade. Viu-se que administrativamente o governo ia mal. Nenhum programa do PAC estava com o cronograma em dia. As obras em andamento não tinham o acompanhamento devido. Faltava coordenação entre os ministérios. Em suma, o governo estava sem rumo. Ou melhor, estava em um movimento inercial, dentro daquela lógica nacional de que é melhor deixar como está, para ver como é que fica.
Vieram as crises políticas. Uma atrás da outra. Atingiram o coração do governo. E foram caindo os ministros, sempre devido às denúncias da imprensa ou por alguma operação da Polícia Federal. Nunca por iniciativa da presidente. Foram defenestrados ministros considerados fortes, como Antonio Palocci, e outros pouco conhecidos, como Alfredo Nascimento. As retiradas sempre foram penosas e só ocorreram depois de muita pressão da imprensa. Seguindo um velho roteiro, até o último momento o governo tentou abafar as denúncias, desqualificando as acusações e acusadores. Quando não encontrou mais saída, restou a demissão.
A repetição dos fatos, em tão curto espaço de tempo, demonstrou que o governo estava apresado pela corrupção. O loteamento dos ministérios e a inépcia dos órgãos de vigilância permitiram que milhões de reais fossem desviados. As denúncias foram pipocando e as acusações eram de que tudo não passava de "fogo amigo". Ou seja, era uma guerra entre os partidos da base governamental, uma luta interna pelo poder (e pelo dinheiro). Como se fosse absolutamente natural saquear o Erário.
Em meio à crise, os partidos continuaram exigindo cargos e favores. Sabiam que a apuração era para inglês ver. Trocavam-se os nomes mas não as práticas; como no Ministério da Agricultura, onde saiu um ministro do PMDB e entrou outro do... PMDB. As denúncias de desvio de milhões de reais não foram apuradas, sequer internamente, em um processo administrativo. Muito menos na esfera judicial.
Herdeira e partícipe ativa do presidencialismo de transação, a presidente acabou prisioneira deste sistema. Não sabe o que fazer. Lula conseguia ocultar os escândalos graças ao seu prestígio popular. Aproveitava qualquer cerimônia para desqualificar os acusadores. E convencia, graças ao seu poder de comunicação. Com Dilma é muito diferente. Ela pouco fala. Quando quer seguir a cartilha lulista, fracassa. Se esforça, tenta retomar a iniciativa, mas, sem agenda política própria, movimenta-se como um zumbi. Transformou em rotina ter de responder, toda segunda-feira, às acusações de corrupção que cercam o governo. Passa a semana tratando do desfecho do problema. Posterga as soluções. No sábado, fica aguardando as revistas e jornais de domingo com mais denúncias. E o processo recomeça.
Em meio ao desgaste, o governo foi obrigado a substituir o figurino da presidente: trocou a fantasia, já gasta, de eficaz gestora, por outra, novinha em folha, a de moralizadora da administração pública, que vem acompanhada de uma vassoura. E, por incrível que pareça, já está colhendo os primeiros frutos. Todos estão elogiando a "faxina". Não foi visto nenhum resultado prático. Para o governo, isto é o que menos importa. Vale a aparência, não a ação, mas a palavra. E, principalmente, a repetição pela imprensa que a presidente está enfrentando a corrupção. Isto "pega bem", a população simpatiza (e como!) com a ideia. Além do que, no ano que vem, tem eleição e nada pior do que a pecha de corrupto para um partido.
A oposição - com raríssimas exceções - continua tão perdida como o governo. Não sabe como agir. Quando encontra um caminho parlamentar - uma CPI no Senado - acaba sendo bombardeada também por "fogo amigo". O argumento é que é necessário dar apoio à presidente para que faça a "faxina". Ela estaria se distanciando do seu partido e, principalmente, do seu criador, o ex-presidente Lula, identificado como o gestor deste presidencialismo de transação. É uma leitura fantasiosa, que impede o embate com o governo e desmobiliza uma oposição já numericamente no Congresso Nacional. Lembra, guardadas as devidas proporções, a estratégia estabelecida durante o mensalão. No ápice da crise, ao invés de avançar e solicitar a abertura de um processo contra o presidente, a oposição apequenou-se. Temeu a vitória. Buscou justificativa na "governabilidade". Optou por levar - expressão da época - Lula sangrando até 2006, para daí vencê-lo facilmente nas urnas. Deu no que deu.
É inegável que a situação atual é muito distinta de 2005. Hoje, vivemos um momento político pior. A oposição é mais frágil, perdeu duas eleições presidenciais, e a impunidade dos mensaleiros deu salvo conduto aos corruptos. Nesta situação adversa, imaginar um antagonismo entre Dilma e Lula não passa de um logro. Esta tática já fracassou no início do ano. E pior: confunde a sociedade. Dá asas à falácia de que a presidente quer fazer a "limpeza" mas não pode. Como se não fosse responsável pelas mazelas do seu governo. Entrega a bandeira da ética e da moralidade aos que a desprezam.
# por Alexandre - 23 de agosto de 2011 às 11:23
Como é bom ler um artigo tão completo como esse. Não conheço nada igual que seja capaz de apresentar uma fotografia nítida do momento histórico e triste que estamos passando.
# por Anônimo - 23 de agosto de 2011 às 20:18
A maioria não se lembra, porém, me lembro muito bem: em 93, no plebiscito parlamentarismo x presidencialismo, o PT foi a favor do presidencialismo crente que iriam ganhar as eleições presidenciais em 94. Agora, estão provando os efeitos desse antiquado sistema de governo. No presidencialismo os deputados tem muito poder e nenhuma dever. No parlamentarismo o gabinete já teria caído. A diferença é essa: no presidencialismo os deputados pintam e bordam e a responsabilidade é toda do presidente. Nenhum país de expressão do mundo, com excessão dos EUA, por razões históricas, é presidencialista. Presidencialismo leva a ditaduras ou ao que acontece no Brasil. Até os EUA mostraram-nos, recentemente, uma triste face do presidencialismo. Ao contrário, vimos o chefe de gabinete em Portugal, a pouco tempo, pedir para sair, pois, não tinha mais sustentação para a execução de reformas necessárias.
# por Joaquim - 23 de agosto de 2011 às 23:56
Maestria.
Mas é só, Villa. Sem muitos elogios rasgados porque ficou muito duro continuar o meu dia após ler um artigo desses. Como sempre... embrulha o estômago e perco até a fome, e olha que sou bom de garfo.
Quem perde somos nós. Esse ''crescimentozinho'' pífio não vai segurar a onda e, ao que tudo indica, o deus-pai-todo-poderoso-articulador volta em 2014 pronto pra zelar pelo Erário e enganar todos, mesmo com todos os problemas financeiros decorrentes desses quase 10 anos de milagre, digo, de patifaria.
A dor que dá ao ler os seus artigos, Villa, é proveniente das mãos atadas que nos são dadas como opção única. Que tristeza é ver que não temos voz e, quando temos (a sua, por exemplo) parece que não são todos que te levam a sério. Alguns dos teus companheiros de debate em diversas ocasiões aparentam estar duramente incomodados com a sua presença. Mas como? Uma pessoa simpática, fatual e de destreza necessária nessa nação roedora de osso sendo execrada por ''colegas de trabalho''? Ahn? Por quê?
Penso muito no que você disse algumas vezes, professor, com relação ao fato de que discutir política no Brasil é ''uma coisa chata''. Tem gente que pode (e vai) te criticar por tocar nesses assuntos, vão até te humilhar e te caracterizar de inconveniente.
Eu sou uma dessas agulhas no palheiro da Zombieland nacional e só levo uma enxurrada de críticas o dia todo dos anestesiados compradores a prestação que acham que vivem numa grande Estocolmo (tá mais pra Sarajevo+Kinshasa) feita de gente linda e feliz, desde de que foi estabelecida a ''DESCOBRIDORES DO BRASIL EM 2002 SOCIEDADE ANÔNIMA''.
Mal sabem o que está por vir... vão preparando os bolsos...!
# por barbarah.net - 24 de agosto de 2011 às 09:10
Joaquim, concordo com as suas observações. Certos colegas do Villa estão incomodadíssimos.
O nosso historiador está pautando o debate político.
# por Roberto P. Pedroso - 24 de agosto de 2011 às 11:19
Caro senhor Marco Antonio Villa,
Recentemente procurei seu blog após assistir suas participações no Jornal da Cultura, seus comentários são sempre muito interessantes e enriquecedores.
Caso possível, gostaria de saber qual é seu posicionamento em relação ao meu pensamento.
Principalmente este ano, a sociedade esta tendo a oportunidade de debater fundamentada em informações aparentemente mais verdadeiras alguns temas como:
- Atuação da Presidente da Republica
- Atuação do Ministério principalmente no que tange a irregularidades, nada ou quase nada se debate sobre realizações.
- A Câmara dos Deputados Federais e Senado, particularmente no que tange ao presidencialismo de coalizões, acredito que não existam atualmente realizações para se debater.
- O reconhecimento das realizações de Fernando Henrique Cardoso.
- A desmistificação de Lula e do PT em relação ao discurso do partido e pratica.
Minha duvidas são:
- Da forma que está qual a real importância da Câmara dos Deputados Federais e do Senado Federal para a Democracia Brasileira? Isto que estamos vendo é Democracia ou a manifestação da Ditadura através do poder Econômico do partido político no poder?
- Discutir o PSDB não seria uma forma de obriga-los a uma mudança de postura, vejo no PSDB um partido tão ou mais rachado que o PT, um partido sem rumo claro onde as disputas internas superam em muito qualquer compromisso com o País.
Até hoje eu me pergunto sobre o texto escrito por José Serra levado para debate na reunião do Conselho Político “Nossa Missão” é missão de quem? Eu fiz esta pergunta no blog do José Serra e meu questionamento foi censurado se quer apareceu em seus comentários, fiz o mesmo questionamento no blog do Sr Goldman e não obtive resposta.
- Outra duvida que tenho é em relação ao Jornalismo das emissoras de TV dos canais abertos. O objetivo real deles é manter a população desinformada?
Tendo em vista os sérios problemas de Segurança hoje nas grandes cidades, os sérios problemas na área de saúde, os sérios problemas na área de educação, os sérios problemas de infraestrutura e mobilidade urbana – não vejo nenhum destes temas ser abordado de forma séria.
# por Dawran Numida - 24 de agosto de 2011 às 18:44
Muito interessante a análise Professor Villa.
E o mais interessante, ainda, é que se as oposições entrarem com o pé errado nessa história de limpeza ética, vão dar-se muito mal. Eleitoral e politicamente em termos de posicionamento. Uma decorrente da outra.
Primeiro, porque a "faxina", está acabando sem mesmo ter começado de fato. Todos receberam apoios, receberam voto de confiança até da presidente em alguns casos.
Segundo, fala-se em faxina, mas não fala-se em devolução do que foi desviado, não fala-se em demissão a bem do serviço público, arresto de bens.
Terceiro, em suma, não fala-se em prisões, mas de algemas que causam desconforto aos detidos.
Quarto, acreditar em ruptura nas hostes do governo seria um erro fundamental e crucial.
Quinto, tentar vender que a presidente estaria desfazendo o que o presidente anterior teria feito, seria prenúncio de catástrofe tática e estratégica.
Sexto, apoiar o governo frente à crise econômica, também seria um furo n' água. Nesse caso, as oposições teriam de apresentar seu diagnóstico da crise, as medidas que aplicariam e atuar politicamente em cima, contrapondo às medidas do governo.
Porém, o que está ocorrendo é totalmente diferente: as oposições são as primeiras a apoiar o governo, "em nome do melhor para o Brasil", como se tudo o que o governo faz, ou vier a fazer, será sempre bom.
Aliás, o que seria o melhor para o Brasil, seriam oposições fortes.
# por Dawran Numida - 25 de agosto de 2011 às 08:34
Complementando, a presidente falou em entrevista na TV que "...a verdeira faxina de seu governo é contra a pobreza...". E que "...aqui não é Roma Antiga, onde jogavam pessoas aos leões...". A "faxina", então, acabou. Os afoitos, ficaram órfãos. Não emplacaram CPIs e apesar de apoios enfáticos, a presidente deu por encerrada a tarefa. Será que aprenderam?
# por Roberto P. Pedroso - 26 de agosto de 2011 às 10:05
A verdade parece ser essa: a terceira mulher mais poderosa do mundo nem é tão poderosa assim, tanto que sentiu-se obrigada a curvar-se à ditadura da “realpolitik” e acalmar a sua inquieta e inconformada base política, assegurando, com essa trivial filosofia da Roma antiga, que a onda de demissões está encerrada.
- Escrito por: Sandro Vaia
# por Joaquim - 26 de agosto de 2011 às 14:59
Barbarah, concordo com as suas observações. Certos colegas do Villa estão incomodadíssimos.
Os colegas do nosso historiador estão pautando empobrecimento do debate político.
# por Anônimo - 22 de setembro de 2011 às 14:17
MUITO BOM. Estou duvulgando a todos.